sexta-feira, 4 de março de 2011


              Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. Em 1945, mais ou menos foi a época em que escreveu a obra A Rosa do Povo...                        
         "No título A Rosa do Povo, a rosa representa a poesia (expressão), das pessoas daquela época. Alvo de admiração inquestionável, tanto pela obra quanto pelo seu comportamento como escritor", Drummond morreu no Rio de Janeiro, no dia 17 de agosto de 1987.

                                       

“A Flor e a Náusea” ( Carlos Drummond de Andrade)


Preso à minha classe e a algumas roupas, Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me'? 

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse. 

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova. As coisas.
Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. 

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem. 

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.Os ferozes leiteiros do mal. 

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima. 

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu. 

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor. 

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia.
Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. 

                                   Análise do poema

Uma flor (ou poesia, esperança) que brota da náusea do cotidiano como explicitamente está indicado no título... “Náusea é, com efeito, uma palavra importante no pensamento existencialista tão em voga àquela época, e encontra-se no título de um romance de 1938 de Jean-Paul Sartre, A náusea. E há uma sintonia entre o significado desta palavra na obra do poeta e na obra do filosofo. ((Drummond, 2007. P.10/11)

         Um poema em que o eu lírico vive experiências angustiantes, cheio de anseios de mudança, de revolta diante de uma realidade cruel (contexto Segunda Guerras Mundial e Ditadura), mas que ainda lhe resta à esperança mesmo que seja mínima ela existe. Diante da leitura empática em que o mundo vivia o poeta busca estímulo para uma nova escrita, com a necessidade de ir contra as questões existências recorrente. Sentir e pensar a poesia, nesse quadro de idéias marcado por um mundo fragmentado pela guerra e ditadura, é perceber também que o sujeito está dilacerado por uma realidade que não perdoa ninguém, dessa forma o eu lírico acredita que o ódio (terceiro verso da sétima estrofe), a revolta, a dor é o melhor de si e com este estará salvo, pois aos poucos dará uma esperança mínima, esta que parece ser impossível diante de tanta injustiça, morte e horror, sendo assim é necessária uma poesia de resistência que vem através da palavra, soltar um grito de humanidade em nome de uma coletividade desesperada pelo caos, como bem cita Alfredo Bosi em O ser e O tempo da Poesia: 

 A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, “esta coleção de objetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia”. (.............)

       A partir do espaço imaginário o poeta tenta abrir uma saída possível, como sua matéria prima é a palavra, ele procura fazer da mesma, um escudo e uma arma para abrir caminhos de libertação, portanto como diz Bosi “Nostalgia, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu caminho caminhando”, embora ela não pudesse fazer, porque não está ao alcance de sua ação simbólica, criar materialmente um mundo novo em que as relações sociais tivessem com base o amor a humanidade, sem ideologias que mascaram a verdade, busca manifestar-se ao seu modo, criando espaços para uma reflexão a respeito do que se está passando no mundo e levando um pouco de esperança aos descrentes.
        A flor que simbolicamente vem representar a poesia, epifania ou a esperança, como demonstra no primeiro verso da oitava estrofe em que: “Uma flor nasceu na rua”! Leva a acreditar que, diante de tanto sofrimento, Drummond fez da poesia “a alma de um mundo sem alma” dessa forma o eu lírico do poema nos leva a crê que uma flor pode nascer rasgando o asfalto mesmo que não se percebe a sua cor, e que suas pétalas são fechadas e não podem abrir, mas esta é reflexa ou fruto da náusea do cotidiano.
        Na segunda estrofe no terceiro e quarto verso, diz que: “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera/ O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse”. É o poeta andando de mãos dada com o tempo e gritando justiça ou expressando a dor da injustiça através da arte poética voltada para um contexto social complexo, no entanto, a poesia passa num processo singular e de tamanha significação e poder, que acaba influenciando na vida do sujeito (leitor), como Bosi fala de forma pertinente: “Projetando na consciência do leitor imagens de um mundo em conflitos e do homem muito mais vivas e reais do que forjadas pelas ideologias, o poema ascende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela”.



REFERENCIAS:
ANDRADE, Carlos Drummond de, A Rosa do Povo. 38a ed.-Rio de Janeiro: Record, 2007.
BOSI, Alfredo. O SER E O TEMPO DA POESIA..........................................................